Sobre Creta nos dias de Paulo. Creta era a maior ilha da Grécia, localizada no mar Mediterrâneo, entre a Grécia continental e o norte da África, ocupando uma posição estratégica nas rotas comerciais entre Europa, Ásia e África. Com cerca de 260 km de extensão e um relevo montanhoso, a ilha possuía cidades importantes como Gortina (capital romana), Cnossos e portos como Bons Portos e Laseia, mencionados em Atos 27. Seu clima mediterrânico favorecia a agricultura, e sua diversidade cultural e religiosa tornava o ambiente desafiador para a propagação do evangelho, exigindo firmeza doutrinária e liderança comprometida, como a que Tito foi chamado a exercer.
Sobre os Cretenses. Paulo está escrevendo a Tito, que foi deixado em Creta para organizar a igreja e estabelecer presbíteros (Tito 1:5). Mas havia um grande desafio: a cultura cretense era moralmente corrompida e espiritualmente enganosa. A citação de Tito 1:12 vem de Epimênides, um poeta-filósofo cretense do século VI a.C., que, ironicamente, era também considerado um “profeta” por seu povo. Paulo cita esse ditado antigo e, no verso 13, afirma: “Este testemunho é verdadeiro.”
Ou seja, Paulo confirma que esse traço cultural ainda era visível no seu tempo.
Como era Creta nos tempos de Paulo?
Culturalmente orgulhosa, mas moralmente corrompida. Creta era uma ilha grega, com forte tradição mitológica. Acreditava-se que Zeus havia nascido ali, o que dava aos cretenses certo orgulho espiritual e nacionalista. Era comum o sincretismo religioso, misturando crenças pagãs com elementos da fé judaica e, agora, cristã.
Povo com má reputação. A palavra “cretizar” (kretizein, em grego) virou um termo pejorativo que significava mentir descaradamente. Paulo os descreve (com base em Epimênides) como:
- Sempre mentirosos: a falsidade era característica dominante.
- Animais ruins (feras malignas): comportamento brutal, sem ética, egoísta.
- Ventres preguiçosos: viviam para os próprios prazeres, especialmente comida e bebida.
Ambientes de engano religioso. Em Tito 1:10-11, Paulo diz que havia muitos insubordinados, vãos faladores e enganadores, especialmente entre os judeus. Havia líderes religiosos que ensinavam por torpe ganância — manipulavam a fé por dinheiro.
Desafio para o Evangelho. A formação de uma igreja saudável em Creta exigiria firmeza, sã doutrina e líderes espiritualmente maduros (Tito 1:5-9). Paulo orienta Tito a repreender severamente os crentes que estavam sendo influenciados por essa cultura (Tito 1:13).
Então, imagine um lugar onde mentir não é exceção, é cultura. Onde a brutalidade é louvada como força, e o prazer pessoal é mais importante que qualquer responsabilidade. Agora imagine o apóstolo Paulo citando um pensador local desse povo — e concordando com ele.
É isso que encontramos em Tito 1:12, um dos versículos mais diretos, provocativos e confrontadores das cartas pastorais. Paulo não está exagerando. Ele está preparando terreno para mostrar o poder transformador da verdade, em contraste com uma sociedade entregue à falsidade, aos instintos e à preguiça moral.
Antes de chamar Tito a estabelecer líderes espirituais, Paulo escancara o tipo de ambiente onde a igreja foi plantada. E a descrição não é nada diplomática.
Vamos mergulhar neste verso incisivo, que revela o diagnóstico brutal da natureza humana caída — e a urgência de uma liderança espiritual que seja completamente diferente do mundo ao seu redor.

Tito 1:12 – “Um dentre eles, seu próprio profeta, disse: Os cretenses são sempre mentirosos, feras ruins, ventres preguiçosos.”
ANÁLISE TEXTUAL
- “Um dentre eles, seu próprio profeta, disse”. τις ἐξ αὐτῶν: “um dentre eles” – destaca que o testemunho vem de dentro da própria cultura cretense. ἴδιος προφήτης: “seu próprio profeta” – a palavra profētēs pode aqui ser entendida como poeta inspirado, ou alguém reconhecido como voz moral ou cultural entre os cretenses. Paulo está usando um testemunho interno como base para repreensão — não se trata de julgamento externo ou preconceito apostólico, mas de um diagnóstico cultural reconhecido pelos próprios cretenses. Esse “profeta” é comumente identificado como Epimênides de Cnossos, um poeta e filósofo cretense do século VI a.C., cujo verso também foi citado por outros autores gregos, e até pelo filósofo romano Cícero.
- “Os cretenses são sempre mentirosos”. ἀεὶ (aeì) = sempre, continuamente, habitualmente. ψεῦσται (pseústai) = mentirosos, enganadores. Substantivo plural. Essa afirmação vai além de uma ação pontual: Paulo está dizendo que a mentira era um padrão cultural, algo profundamente enraizado no caráter público dos cretenses. Referência teológica: Mentir é uma marca dos filhos do diabo (João 8:44), e não dos filhos de Deus. A mentira destrói confiança, contamina relacionamentos e inviabiliza a liderança espiritual (Ef 4:25).
- “Feras ruins”. κακὰ = más, malignas, nocivas. θηρία = feras, animais selvagens, irracionais. Esta expressão carrega o sentido de que os cretenses agem de forma animalesca, irracional, indomável, e perigosamente impulsiva. O uso de θηρία no NT quase sempre tem conotação de selvageria hostil, destrutiva, e ausência de domínio moral (cf. Ap 13:1 – a “besta”). Teologicamente, remete à vida não transformada, dominada pelos instintos carnais, oposta à nova criatura (cf. 2 Pe 2:12; Jd 10).
- “Ventres preguiçosos”. γαστέρες = ventres, estômagos — símbolo dos apetites carnais, sensuais e materiais. ἀργαί = indolentes, preguiçosos, sem utilidade, inoperantes. Essa expressão une hedonismo com preguiça: uma vida governada pelo estômago, pelo desejo, e pela ociosidade. Na Bíblia, viver “para o ventre” é viver em idolatria dos próprios apetites (cf. Fp 3:19 – “cujo deus é o ventre”). A expressão sugere uma vida centrada em si mesma, onde o prazer substitui o propósito.

APLICAÇÕES TEOLÓGICAS
A citação de Paulo é um diagnóstico espiritual, não é culturalismo barato. Ele aponta que a igreja em Creta está inserida num contexto moralmente corrompido, onde os padrões do mundo precisam ser confrontados pela Palavra.
Liderança cristã exige confrontação com comportamentos carnais. Por isso, em Tito 1:13, ele ordena: “Repreende-os severamente”. O Evangelho não adapta a igreja ao mundo, mas santifica-a da influência do mundo (Jo 17:17).
A regeneração deve produzir um povo diferente. Paulo reconhece os pecados dos cretenses, mas ele também crê que o Evangelho tem poder para transformar mentirosos, feras e hedonistas em filhos de Deus (cf. Tt 2:11-14).
CONCLUSÃO TEOLÓGICA
Tito 1:12 é uma descrição crua da decadência moral, usada por Paulo com intencionalidade pastoral. Ele mostra que:
- O pecado pode estar tão normalizado em uma sociedade, que os próprios habitantes o reconhecem como parte de sua identidade;
- A igreja deve ser conduzida por homens irrepreensíveis e espiritualmente sãos, exatamente para não ser influenciada por tais comportamentos predominantes;
- A graça de Deus não nega o estado do ser humano, mas o transforma pela verdade e pela disciplina espiritual.
- “A igreja não é chamada para imitar o mundo ao seu redor, mas para ser um contraste visível, uma comunidade redimida pela verdade e para a verdade.”