Refutando o Livre-Arbítrio Absoluto
O Pelagianismo é, sem dúvidas, uma das doutrinas mais controversas do cristianismo primitivo. Afirmando que o ser humano é perfeitamente capaz de alcançar a retidão moral por meio de seu próprio esforço, sem a graça divina, esse ensino confrontou diretamente a doutrina do pecado original e da dependência absoluta do homem em relação a Deus para a salvação. O resultado? Foi rechaçado pelos principais teólogos de sua época e declarado heresia em diversos concílios eclesiásticos. Neste artigo, analisaremos as origens do pelagianismo, seus pontos principais e as razões pelas quais a Igreja o refutou veementemente, recorrendo a fontes históricas e bíblicas.
1. Contexto Histórico e Origem do Pelagianismo
1.1. Pelágio e seu Tempo
Pelágio foi um monge asceta que viveu entre os séculos IV e V d.C. Ele se estabeleceu em Roma por volta do final do século IV, num período em que a Igreja já havia conquistado certa estabilidade após a conversão do imperador Constantino e o Édito de Milão (313 d.C.). A Igreja, então, passava por debates intensos quanto à natureza de Cristo, à Trindade e, posteriormente, ao papel da graça e da vontade humana na salvação.
1.2. O Debate com Agostinho
A controvérsia começou de fato quando as ideias de Pelágio sobre a capacidade humana de evitar o pecado foram confrontadas pelos escritos de Santo Agostinho de Hipona (354–430 d.C.). Enquanto Agostinho enfatizava a depravação humana e a necessidade absoluta da graça de Deus para qualquer passo em direção ao bem, Pelágio sustentava que o homem, mesmo após a Queda, preservava inteiramente o seu livre-arbítrio para optar pelo bem sem precisar de uma ajuda especial (graça infundida). Esse antagonismo gerou uma série de debates, cartas, tratados e, por fim, concílios que examinariam o ensino de Pelágio.
1.3. Condenações Oficiais
- Concílio de Cartago (418 d.C.): Condenou formalmente o pelagianismo, afirmando que a graça é indispensável para a salvação e que todos herdamos as consequências do pecado original.
- Papa Zósimo (418 d.C.): Inicialmente, fez uma leitura atenta das doutrinas de Pelágio, mas, posteriormente, confirmou a decisão dos bispos africanos, declarando o pelagianismo incompatível com a fé cristã.
- Concílio de Éfeso (431 d.C.): Além de condenar o Nestorianismo, o concílio reafirmou a reprovação do pelagianismo.

2. Principais Postulados Pelagianos
- Negação do Pecado Original: Para Pelágio, a Queda de Adão afetou apenas ele próprio, não transmitindo consequências espirituais ou morais permanentes à humanidade.
- Suficiência do Livre-Arbítrio: Pelágio acreditava que a vontade humana, por si só, poderia escolher o bem ou o mal sem a necessidade de uma graça especial para inclinar o coração.
- Exemplo de Cristo: Enquanto a Igreja sustentava que Cristo não apenas deu o exemplo, mas também proveu uma graça eficaz para o pecador, Pelágio destacava mais o aspecto exemplar da vida de Cristo do que a necessidade de Sua obra redentora para capacitar o ser humano.
3. Refutação Bíblica e Teológica
3.1. Romanos 5 e a Realidade do Pecado Original
A Carta aos Romanos, especialmente no capítulo 5, é fundamental para o debate sobre o pecado original. Paulo ensina que “por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte” (Rm 5:12). Pelágio interpretava que esse texto se referia apenas à morte física, não a uma corrupção moral herdada. No entanto, o contexto do capítulo sugere que a condição humana toda é afetada pelo pecado, pois Paulo contrapõe a “ofensa de Adão” à “justiça de Cristo”. A salvação em Cristo é, portanto, maior que a simples superação de maus exemplos: ela restaura a comunhão do homem com Deus e o liberta de uma condição caída.
3.2. Efésios 2:1-5 e a Necessidade Absoluta da Graça
No texto de Efésios 2:1-5, Paulo descreve os homens como “mortos em ofensas e pecados”, sendo salvos unicamente pela graça de Deus. A expressão “mortos” não faz sentido se considerarmos um homem ainda capaz de buscar a Deus por si mesmo. Tal estado de “morte espiritual” enfatiza que, sem a ação divina, não há possibilidade de regeneração ou de escolha do bem supremo.
3.3. João 15:5 e a Dependência em Cristo
Jesus diz em João 15:5: “Sem mim nada podeis fazer.” A força dessas palavras aponta para a dependência integral do crente em Cristo. Se fosse verdade que o homem pudesse, por esforço próprio, guardar os mandamentos perfeitamente, não haveria motivos para uma declaração tão absoluta. Esse versículo foi amplamente citado pela teologia agostiniana para mostrar que, embora o livre-arbítrio exista, ele está escravizado pelo pecado antes de a graça atuar.

4. Argumentos Teológicos e Históricos Contra Pelágio
- Unanimidade Patrística: Ainda que haja nuances entre os Pais da Igreja sobre o grau de corrupção humana, a maioria afirmava, em maior ou menor medida, a necessidade da graça de Deus para a salvação. Pelágio, com seu otimismo antropológico, colidia frontalmente com esse consenso.
- Tradição Litúrgica: A liturgia cristã antiga, com suas orações de confissão e súplica, pressupõe que o fiel não apenas segue um “exemplo” de Cristo, mas depende inteiramente dEle para vencer suas inclinações pecaminosas.
- Experiência Pastoral: Desde o período apostólico até os escritos de Agostinho, há o testemunho de que mesmo os cristãos mais dedicados lutam contra o pecado (cf. Romanos 7). A simples força de vontade não é suficiente para garantir vitória espiritual duradoura.
5. Por que o Pelagianismo é Considerado Heresia?
O termo “heresia” é reservado para doutrinas que ferem de forma fundamental a verdade revelada e atestada pela Igreja. No caso do pelagianismo, o núcleo do cristianismo — a salvação gratuita, pela graça de Deus, mediante a fé em Cristo — é colocado em risco. Sem a compreensão correta de que a graça precede e capacita a vontade humana, o sacrifício de Cristo é reduzido a mero exemplo moral. Isso afasta o crente do real significado da cruz e da ressurreição.
Além disso, a Igreja viu que a visão pelagiana, ao minimizar o pecado original, tendia a superestimar a capacidade moral humana, esvaziando a ideia bíblica de que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3:23). Assim, a heresia do Pelagianismo solapa o entendimento mais profundo da redenção, tornando-a desnecessária ou opcional.

6. Conclusão
A controvérsia pelagiana não foi apenas um debate teórico, mas uma discussão que tocou no coração da fé cristã. Pelágio, ao insistir na autonomia humana quase ilimitada, lançou dúvidas sobre a realidade do pecado original e a imprescindibilidade da graça. Agostinho, apoiado pelos concílios e a tradição da Igreja, demonstrou que tal visão não encontra base sólida nas Escrituras nem no testemunho histórico dos cristãos.
Hoje, ao olharmos para esse capítulo crucial da história da Igreja, somos lembrados de que o equilíbrio bíblico apresenta tanto a responsabilidade humana quanto a ação soberana de Deus. A graça não anula o livre-arbítrio, mas o restaura e o fortalece, permitindo que “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2:13).
Em síntese, o Pelagianismo é classificado como heresia porque nega a profundidade do estrago causado pelo pecado e, consequentemente, subestima a necessidade absoluta da graça divina. Na cosmovisão cristã, a salvação é dom de Deus, não resultado de esforço meritório: “Pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2:8). A cruz de Cristo, portanto, não é um simples lembrete moral, mas a ponte real e necessária que reconcilia a humanidade pecadora com o Pai celeste.
Referências Históricas e Bibliográficas
- Agostinho de Hipona, Contra Pelagianos (Coletâneas de Sermões e Cartas).
- Concílio de Cartago (418 d.C.): Cânones contra o Pelagianismo.
- Papas Inocêncio I e Zósimo: Correspondências e decretos sobre Pelágio.
- Concílio de Éfeso (431 d.C.): Declarações de repúdio ao Pelagianismo.
- Bíblia Sagrada (Particularmente Romanos 5, Efésios 2 e João 15).
Que esta análise sirva como um lembrete histórico e teológico de que, sem a graça divina, não há transformação real no homem. A heresia pelagiana foi refutada justamente para defender a essência do Evangelho: o ser humano precisa de um Salvador, e esse Salvador é Cristo, que concede graça suficiente para nos libertar do pecado e nos conduzir à vida eterna.